RENÉ
GIRARD E O DESEJO MIMÉTICO
René
Girard (1923-2015) foi um antropólogo e filósofo francês, membro da Academia
Francesa (2005) e Professor de Literatura Francesa em Stanford. Com trabalhos
que influenciaram e influenciam os mais vastos campos do conhecimento,
perpassando pela Sociologia, Psicologia, Psicanálise, Filosofia, Crítica
Literária e Antropologia. Com uma obra vasta, mas que infelizmente não é muito
conhecida no Brasil parece ganhar um novo fôlego em terras tupiniquins com a
tradução recente de boa parte de seus livros para o português. Muitos são os
conceitos em sua obra, contudo devido à proposta do texto abster-nos-emos a
comentar os principais.
O
DESEJO MIMÉTICO
Todo
o pensamento girardiano nasce com uma noção simples, mas extremamente
arrebatadora acerca do desejo. Para Girard, ele é mimético, “deseja-se aquilo
que o outro deseja”. Mas o que ele quer dizer com isso? Quem é esse “outro”?
Será realmente que aquilo que desejamos não passa de um puro “jogo” dos
sentidos que enevoam o real mecanismo do desejo? Até que ponto essa teoria
responde questões nevrálgicas de nossa atual sociedade?
Sendo
bastante sintético, poderíamos dizer – me perdoem os girardianos – que o cerne
da obra de Girard e seus desdobramentos estão em seus quatro livros bases: Mentira Romântica e Verdade Romanesca (1961), A Violência e o Sagrado (1972) e Coisas Ocultas Desde a Fundação do
Mundo (1978) e Rematar Clausewitz
(2007).
Em
Mentira Romântica e Verdade Romanesca, Girard lança as bases para
sua Teoria Mimética. Nela, ele nos apresenta o mecanismo do desejo: “um
triângulo”. Para ele, os vértices desse triângulo seriam compostos por:
Sujeito, Modelo\Mediador e Objeto. Algo muito simples, mas que traz
desdobramentos profundos.
Girard
diferencia a relação sujeito-modelo em dois tipos, mediação externa e mediação
interna, nesta há uma proximidade espiritual
entre ambos enquanto naquela não. Esse aspecto é muito importante. A mediação nada tem em relação a sentido
geográfico e sim metafísico entre o sujeito e o modelo.
Partindo
dessa diferenciação, Girard analisa obras de variados momentos históricos. De
Cervantes a Dostoievski, passando por Flaubert, Stendhal e Proust. Em toda a
sua análise, Girard busca traçar um paralelo: Como cada autor interpreta a relação sujeito-objeto-modelo?
Girard
irá perceber que estes, por ele citado, apresentam um traço típico: eles não
escondem a relação triangular. Esse será um pórtico de sua obra. Há dois tipos
romances, aqui compreendidos em sentido lato: o romanesco e o romântico.
No primeiro, a relação triangular é descortinada. O autor apresenta o mecanismo do desejo de forma clara. Lógico, feita
algumas ressalvas. No segundo, essa relação é enevoada, a ponto de não ser
visível a relação triangula, mas ela está lá.
Girard
parte da crítica literária, passa pela Psicologia e chega à Antropologia. Ora,
na mediação interna a proximidade entre o sujeito e o modelo enseja
concomitante uma exasperação pela disputa do objeto entre eles. Aporia que não
há na externa. Essa rivalidade, que
pode levar até a violência física, é, para Girard, o âmago de outro conceito,
também arrebatador: o do bode expiatório.
O
BODE EXPIATÓRIO
Após
um período de quase doze anos (1961-1972), publica, Girard, A Violência e o Sagrado. Nela, ele
aprofunda ainda mais o tema do desejo mimético. Estudando as sociedades ditas
primitivas, busca encontrar a resposta para uma questão complexa: qual a origem
da Violência? E, encontrando esta: qual o mecanismo criado pela sociedade para
evitar a sua autodestruição pela violência?
Já
sabemos que sendo o desejo mimético, leva, na maioria dos casos, onde há mediação interna, o conflito. Somos, ao
mesmo tempo, sujeito e modelo. Essa constatação tem um efeito prodigioso. O
desejo é quase que “contagioso”, o conflito também. Com o aumento da rivalidade
e a exasperação da violência, as sociedades primitivas precisaram encontrar
métodos para o controle da violência, as que não conseguiram se auto
extinguiram.
Uma
hipótese de controle da violência proposto por Girard foi o do bode expiatório.
A violência de todos contra todos seria canalizada para um sujeito: o bode expiatório. Que depois de sacrificado,
tornar-se-ia quase que como uma figura transcendental. A paz e a ordem social
retornariam.
Essa
noção tal clara, mas ao mesmo tempo poderosa, pode ser transposta para os
nossos dias atuais. Quantas vezes, percebemos que o ser humano encoleriza-se
com uma facilidade assombrosa, todavia para perpassar este estado de ira
demora-se e muitas o subterfugio utilizado pelo homem é a transposição da raiva
a outrem. Um pai, por exemplo, que estressado no trabalho acaba por remeter
suas frustações à família exemplifica bem esta característica humana.
O
sacrifício animal em substituição ao humano foi um aspecto estudado por Girard.
Apresentando trabalhos de outros autores, ele nos mostra que até mesmo nesses
rituais os animais escolhidos eram próximos, guardavam até mesmo semelhanças
com o homem. A docilidade e ternura de um cordeiro sendo levado para o
sacrifício muito comum em povos pastoris.
A obra é extensa e apaixonante, chega Girard à
conclusão de que nosso sistema judiciário reproduz o sacrifício das sociedades
sem estado. Pois, controlando o processo da vingança, destituindo o revide
privado pelo público, acaba o sistema judiciário funcionando como uma válvula
de escape para o controle da violência. Algo que parece lógico, mas que só um
gênio como o de Girard perceberia a correlação entre o desejo mimético como uma
das origens de um sistema tão complexo.
Girard
é responsável pelo florescimento de uma interdicisplinaridade singular. Permeia
em suas obras os mais vastos campos do conhecimento, buscando conexões e
explicações. Dono de uma prosa leve e envolvente faz
crescer em seus leitores um desejo: compreender ainda mais o ser humano.
LIVROS:
- Mensonge romantique et vérité romanesque (1961) ISBN 2012789773 (tradução em português: Mentira Romântica e Verdade Romanesca. É Realizações. 2009. ISBN 9788588062764)
- Dostoïevski : du double à l'unité (1963) (tradução em português: Dostoiévski: Do Duplo à Unidade. Editora É Realizações. 2011.ISBN 9788580330236)
- La Violence et le sacré (1972) ISBN 2012788971 (tradução em português: Violência e o Sagrado. Paz e Terra. ISBN 8521903154)
- Critiques dans un souterrain (1976) ISBN 2253032980 (tradução em português: A Crítica no Subsolo. Paz e Terra. 2011. ISBN 9788577531561)
- Des choses cachées depuis la fondation du monde (1978) ISBN 2253032441 (tradução em português: Coisas Ocultas Desde a Fundação do Mundo. Paz e Terra. 2009. ISBN 8577530760)
- Le Bouc émissaire (1982) ISBN 2253037389
- La Route antique des hommes pervers (1985) ISBN 2253045918 (tradução em português: Rota Antiga dos Homens Perversos. Editora Paulus. 2009. ISBN 8534931399)
- Shakespeare : les feux de l'envie (1990)
- Quand ces choses commenceront (1994) (tradução em português: Quando começaram a acontecer essas coisas. É Realizações. 2011. ISBN 8580330335 )
- Je vois Satan tomber comme l'éclair (1999) (tradução em português: Eu Via Satanás Cair do Céu Como um Raio. Instituto Piaget. ISBN 9727716229)
- Celui par qui le scandale arrive (2001) ISBN 2220050114, comprenant trois courts essais et un entretien avec Maria Stella Barberi. (tradução em português: Aquele por Quem o Escândalo Vem. Editora É Realizações. 2011. ISBN 9788580330502)
- La voix méconnue du réel: Une théorie des mythes archaïques et modernes (2002) ISBN 2253130699
- Le sacrifice (2003) ISBN 2717722637 (tradução em português: O Sacrifício. É Realizações. 2013. ISBN 8580330521)
- Les origines de la culture (2004) ISBN 2220053555 (tradução em português: Um longo argumento do princípio ao fim: diálogos com João Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello. Topbooks. 2000. ISBN 8574750204)
- Anorexie et désir mimétique (2008). Paris: L'Herne. ISBN 9782851978639. (tradução em português: Anorexia e Desejo Mimético. Editora É Realizações. 2011. ISBN 9788580330243)
- Mimesis and Theory: Essays on Literature and Criticism, 1953-2005. Ed. by Robert Doran. Stanford: Stanford University Press, 2008.
- La Conversion de l'art. (2008) Paris: Carnets Nord. ISBN 978-2-35536-016-9. ((tradução em português: A Conversão da Arte. Editora É Realizações. 2011. ISBN 9788580330311)