segunda-feira, 17 de outubro de 2016


RENÉ GIRARD E O DESEJO MIMÉTICO

René Girard (1923-2015) foi um antropólogo e filósofo francês, membro da Academia Francesa (2005) e Professor de Literatura Francesa em Stanford. Com trabalhos que influenciaram e influenciam os mais vastos campos do conhecimento, perpassando pela Sociologia, Psicologia, Psicanálise, Filosofia, Crítica Literária e Antropologia. Com uma obra vasta, mas que infelizmente não é muito conhecida no Brasil parece ganhar um novo fôlego em terras tupiniquins com a tradução recente de boa parte de seus livros para o português. Muitos são os conceitos em sua obra, contudo devido à proposta do texto abster-nos-emos a comentar os principais.

O DESEJO MIMÉTICO

Todo o pensamento girardiano nasce com uma noção simples, mas extremamente arrebatadora acerca do desejo. Para Girard, ele é mimético, “deseja-se aquilo que o outro deseja”. Mas o que ele quer dizer com isso? Quem é esse “outro”? Será realmente que aquilo que desejamos não passa de um puro “jogo” dos sentidos que enevoam o real mecanismo do desejo? Até que ponto essa teoria responde questões nevrálgicas de nossa atual sociedade?
Sendo bastante sintético, poderíamos dizer – me perdoem os girardianos – que o cerne da obra de Girard e seus desdobramentos estão em seus quatro livros bases: Mentira Romântica e Verdade Romanesca (1961), A Violência e o Sagrado (1972) e Coisas Ocultas Desde a Fundação do Mundo (1978) e Rematar Clausewitz (2007).
Em Mentira Romântica e Verdade Romanesca, Girard lança as bases para sua Teoria Mimética. Nela, ele nos apresenta o mecanismo do desejo: “um triângulo”. Para ele, os vértices desse triângulo seriam compostos por: Sujeito, Modelo\Mediador e Objeto. Algo muito simples, mas que traz desdobramentos profundos.
Girard diferencia a relação sujeito-modelo em dois tipos, mediação externa e mediação interna, nesta há uma proximidade espiritual entre ambos enquanto naquela não. Esse aspecto é muito importante. A mediação nada tem em relação a sentido geográfico e sim metafísico entre o sujeito e o modelo.
Partindo dessa diferenciação, Girard analisa obras de variados momentos históricos. De Cervantes a Dostoievski, passando por Flaubert, Stendhal e Proust. Em toda a sua análise, Girard busca traçar um paralelo: Como cada autor interpreta a relação sujeito-objeto-modelo?
Girard irá perceber que estes, por ele citado, apresentam um traço típico: eles não escondem a relação triangular. Esse será um pórtico de sua obra. Há dois tipos romances, aqui compreendidos em sentido lato: o romanesco e o romântico. No primeiro, a relação triangular é descortinada. O autor apresenta o mecanismo do desejo de forma clara. Lógico, feita algumas ressalvas. No segundo, essa relação é enevoada, a ponto de não ser visível a relação triangula, mas ela está lá.
Girard parte da crítica literária, passa pela Psicologia e chega à Antropologia. Ora, na mediação interna a proximidade entre o sujeito e o modelo enseja concomitante uma exasperação pela disputa do objeto entre eles. Aporia que não há na externa. Essa rivalidade, que pode levar até a violência física, é, para Girard, o âmago de outro conceito, também arrebatador: o do bode expiatório.

O BODE EXPIATÓRIO

Após um período de quase doze anos (1961-1972), publica, Girard, A Violência e o Sagrado. Nela, ele aprofunda ainda mais o tema do desejo mimético. Estudando as sociedades ditas primitivas, busca encontrar a resposta para uma questão complexa: qual a origem da Violência? E, encontrando esta: qual o mecanismo criado pela sociedade para evitar a sua autodestruição pela violência?
Já sabemos que sendo o desejo mimético, leva, na maioria dos casos, onde há mediação interna, o conflito. Somos, ao mesmo tempo, sujeito e modelo. Essa constatação tem um efeito prodigioso. O desejo é quase que “contagioso”, o conflito também. Com o aumento da rivalidade e a exasperação da violência, as sociedades primitivas precisaram encontrar métodos para o controle da violência, as que não conseguiram se auto extinguiram.
Uma hipótese de controle da violência proposto por Girard foi o do bode expiatório. A violência de todos contra todos seria canalizada para um sujeito: o bode expiatório. Que depois de sacrificado, tornar-se-ia quase que como uma figura transcendental. A paz e a ordem social retornariam.
Essa noção tal clara, mas ao mesmo tempo poderosa, pode ser transposta para os nossos dias atuais. Quantas vezes, percebemos que o ser humano encoleriza-se com uma facilidade assombrosa, todavia para perpassar este estado de ira demora-se e muitas o subterfugio utilizado pelo homem é a transposição da raiva a outrem. Um pai, por exemplo, que estressado no trabalho acaba por remeter suas frustações à família exemplifica bem esta característica humana.
O sacrifício animal em substituição ao humano foi um aspecto estudado por Girard. Apresentando trabalhos de outros autores, ele nos mostra que até mesmo nesses rituais os animais escolhidos eram próximos, guardavam até mesmo semelhanças com o homem. A docilidade e ternura de um cordeiro sendo levado para o sacrifício muito comum em povos pastoris.
 A obra é extensa e apaixonante, chega Girard à conclusão de que nosso sistema judiciário reproduz o sacrifício das sociedades sem estado. Pois, controlando o processo da vingança, destituindo o revide privado pelo público, acaba o sistema judiciário funcionando como uma válvula de escape para o controle da violência. Algo que parece lógico, mas que só um gênio como o de Girard perceberia a correlação entre o desejo mimético como uma das  origens de um sistema tão complexo.


Girard é responsável pelo florescimento de uma interdicisplinaridade singular. Permeia em suas obras os mais vastos campos do conhecimento, buscando conexões e explicações.   Dono de uma prosa leve e envolvente faz crescer em seus leitores um desejo: compreender ainda mais o ser humano.

LIVROS: 
  • Mensonge romantique et vérité romanesque (1961ISBN 2012789773 (tradução em português: Mentira Romântica e Verdade Romanesca. É Realizações. 2009. ISBN 9788588062764)
  • Dostoïevski : du double à l'unité (1963) (tradução em português: Dostoiévski: Do Duplo à Unidade. Editora É Realizações. 2011.ISBN 9788580330236)
  • La Violence et le sacré (1972ISBN 2012788971 (tradução em português: Violência e o Sagrado. Paz e Terra. ISBN 8521903154)
  • Critiques dans un souterrain (1976ISBN 2253032980 (tradução em português: A Crítica no Subsolo. Paz e Terra. 2011. ISBN 9788577531561)
  • Des choses cachées depuis la fondation du monde (1978ISBN 2253032441 (tradução em português: Coisas Ocultas Desde a Fundação do Mundo. Paz e Terra. 2009. ISBN 8577530760)
  • Le Bouc émissaire (1982ISBN 2253037389
  • La Route antique des hommes pervers (1985ISBN 2253045918 (tradução em português: Rota Antiga dos Homens Perversos. Editora Paulus. 2009. ISBN 8534931399)
  • Shakespeare : les feux de l'envie (1990)
  • Quand ces choses commenceront (1994) (tradução em português: Quando começaram a acontecer essas coisas. É Realizações. 2011. ISBN 8580330335 )
  • Je vois Satan tomber comme l'éclair (1999) (tradução em português: Eu Via Satanás Cair do Céu Como um Raio. Instituto Piaget. ISBN 9727716229)
  • Celui par qui le scandale arrive (2001ISBN 2220050114, comprenant trois courts essais et un entretien avec Maria Stella Barberi. (tradução em português: Aquele por Quem o Escândalo Vem. Editora É Realizações. 2011. ISBN 9788580330502)
  • La voix méconnue du réel: Une théorie des mythes archaïques et modernes (2002ISBN 2253130699
  • Le sacrifice (2003ISBN 2717722637 (tradução em português: O Sacrifício. É Realizações. 2013. ISBN 8580330521)
  • Les origines de la culture (2004ISBN 2220053555 (tradução em português: Um longo argumento do princípio ao fim: diálogos com João Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello. Topbooks. 2000. ISBN 8574750204)
  • Anorexie et désir mimétique (2008). Paris: L'Herne. ISBN 9782851978639. (tradução em português: Anorexia e Desejo Mimético. Editora É Realizações. 2011. ISBN 9788580330243)
  • Mimesis and Theory: Essays on Literature and Criticism, 1953-2005. Ed. by Robert Doran. Stanford: Stanford University Press, 2008.
  • La Conversion de l'art. (2008) Paris: Carnets Nord. ISBN 978-2-35536-016-9. ((tradução em português: A Conversão da Arte. Editora É Realizações. 2011. ISBN 9788580330311)