segunda-feira, 10 de agosto de 2015

A Polícia e o Libertarianismo: um conflito moral




Existe uma relação um pouco tensa entre as ideias libertárias e a polícia institucional/estatal. Libertários são anti-estado, e por isso combatem todas as formas daquilo que chamam de “monopólio da violência”. Segundo os libertários, as polícias civil, militar, federal e as forças armadas não teriam legitimidade de ação, pois são mantidas pela coerção dos impostos – o ideal, portanto, seria adotar o policiamento privado.

Até aí, tudo bem. Contestar o monopólio do uso da força é válido e nobre, bem como questionar a sustentação de um órgão mediante a coerção fiscal do cidadão. É uma contestação de sistema, e um convite à reflexão sobre os problemas do modelo estatista de organização da sociedade.

No entanto, Fernando Chiocca publicou um texto no Instituto Mises Brasil de nome “A Ética da Polícia”, em que passa dos limites das contestações básicas libertaristas. Reforçando as narrativas esquerdistas anti-PM que tanto infectam as universidades brasileiras, ele acusa especificamente os policiais honestos e cumpridores do dever, em nome de alguns de seus departamentos, de “vilões” e de criminosos comuns, com o argumento de que estes atacariam a propriedade privada. “Eles não passam de criminosos, que eventualmente também executam boas ações.”, diz ele. E dá como exemplo a ação coercitiva, em tese, do fechamento de bingos privados (libertários não consideram o "jogo" passível de criminalização) e a apreensão de drogas (idem). São suas palavras:

“Antes de qualquer coisa, quero deixar claro que este artigo não trata de uma crítica aos policiais corruptos, e sim à polícia em si.” Ou seja: não resta dúvida de que ele está falando dos policiais honestos e responsáveis.

Não vamos aqui entrar no mérito sobre o que deveria ser considerado crime ou não. Para efeito de argumentação, vamos considerar que Chiocca está correto, e que criminalizar o jogo e o uso de drogas seja mesmo uma agressão à liberdade individual, e um ato imoral. O que queremos mostrar é que,independente disso, a tentativa de vilanização do policial é um comportamento anti-ético e um desserviço político. Vamos tentar, abaixo, mostrar as superficialidades e incorreções lógicas de Chiocca. Segue um trecho do referido artigo, para depois comentá-lo:

“o monopólio compulsório do uso da força exercido por uma organização [polícia] que além deste crime — do monopóliopratica inúmeros outros, cria uma situação em que a instituição da polícia, que deveria ser a guardiã dos direitos de propriedade, é a mesma que ataca estes direitos.”

À primeira vista, isto pareceria sensato: a polícia que nos protege de perigos, é a mesma subordinada à violência estatal. Mas há uma falácia das grossas aí.

Ora: se “o monopólio compulsório do uso da força” é oferecido por lei, e se a lei é definida por uma votação, deve-se observar que o “monopólio da força” não é exercido pela polícia, mas pela lei, em primeira instância, pelo sistema representativo que a institui, em segunda instância, e pela legitimação social deste sistema, por fim. A polícia é apenas um derivado em quarto nível (no mínimo) instrumentalizado pela coerção estatal.

O suposto “crime de monopólio” do qual a polícia é acusada (supondo-se, aqui, que já haja uma “sentença condenatória” a priori) não é um contexto do qual o policial possa fugir no atual sistema, porque o monopólio não é definido pelo indivíduo policial. Sua profissão está contida em engrenagens coercitivas de estado, e apenas uma subversão consciente em massa poderia mudar isto. Desta forma, jamais se poderia comparar o crime de um bandido comum que é condenado por lei, pelo sistema representativo e que é admoestado socialmente, com a ação de um policial cumpridor do seu dever legal. Deve-se contestar a lei, e se buscar a educação acerca do problema.

Certamente, opolicial pode, sim,ser RESPONSABILIZADO em certa medida,pois ésujeito ativo.Masem que medida? Esta responsabilização configura passível de tipificação, como rotulam os libetários com aparente facilidade?


O Policial é instrumentalizado pelo Estado

Existe um conceito no direito conhecido como “autoria mediata”. Autoria mediata acontece quando o autor do crime usa um agente inconsciente para cometer um crime – por exemplo, um médico que quer matar o paciente, e receita uma substância fatal para que a enfermeira aplique, sem que ela saiba da trama macabra. Já de pronto, vemos que o agente do crime não se confunde com o autor do crime. O autor do homicídio seria o médico, e a enfermeira estaria imediatamente inocentada.

No caso dos policiais, quem seriam os autores? Resposta: o propositor da lei, e todos os que corroboraram para sua aprovação. Os policiais estariam evidentemente sendo instrumentalizados por aqueles. Isto significa que há uma inconsciência dupla: (1) os policiais não sabem que são instrumentalizados e (2) muitos dos que instrumentalizaram não sabem que estão fazendo isto. Vejam a distância abissal que nos posicionamos da noção de “criminalidade”.

E isto não poderia ser de modo algum confundido ou comparado com a retórica esquerdista de instrumentalização subjetiva, como o caso se culpar “a desigualdade social” ou a “pobreza” por um crime que conscientemente se cometeu. São dois fenômenos brutalmente distintos, pois na autoria mediata do caso do policial, não há consciência do agente, nem do instrumentalizado, nem do instrumentalizador. Já no caso de apelar à “pobreza” para justificar um crime, não há instrumentalização porque só existe o autor que age diretamente (imediato) – ninguém o obrigou por lei a cometer o crime, que ele sabia ser crime, e ninguém tem culpa da circunstância de pobreza em que a sorte lhe colocou. Ademais, estas circunstâncias apenas poderiam atenuar a pena, e jamais inocentar.

E se fosse crime?


Mas vamos esquecer tudo isto. Vamos imaginar, por obséquio, que o policial honesto e responsável tenha cometido realmente um “crime” ao apreender drogas e fechar bingos. Concretizando esta situação fantasiosa, a Teoria do Direito oferece parâmetros eficazes para tais análises, como a dosimetria da pena.  Quando se vai julgar um crime, a dosimetria penal recomenda a avaliação cuidadosa de 8 fatores: 

1) Culpabilidade (avaliar se há intenção ou não do agente)
2) Antecedentes criminais
3) Conduta social (Relacionamento do indivíduo com a família, trabalho e sociedade);
4) Personalidade do agente (Se o indivíduo possui personalidade voltada para o crime);
5) Motivos;
6) Circunstâncias do crime (modo pelo qual o crime se deu);
7) Consequências (além do fato contido na lei);
8) Comportamento da vítima.


Vamos lá. Ponto por ponto. No caso do policial que apreende drogas e fecha bingos, não há intenção de cometer o crime, mas de combatê-lo, e de cumprir uma lei (1). Também não há antecedentes criminais, em se supondo a honestidade do mesmo (podemos nos concentrar nos policiais honestos, pois Chiocca os comparou a qualquer bandido) (2) e existe um bom relacionamento com a família (3). Sobre a personalidade do agente (4), é evidente que o policial honesto não tem vocação para o crime, mas para sua contenção. Supor os motivos do crime (5) seria surreal, pois a motivação é a própria lei. Quanto às circunstâncias (6), seria a obrigação de serviço, sob pena de ser preso por prevaricação (recusa de cumprimento do dever). Já sobre as consequências do crime (7), é preciso ver caso a caso, por exemplo: o dono do bingo vítima dos policiais poderia ser morto por dívida, caso perdesse sua fonte de renda, como também o fechamento do bingo poderia salvar muitas famílias de viciados em jogo que deixaram de dever a agiotas.

Observamos que destes 7 primeiros itens, 6 confeririam atenuantes evidentes aos policiais, e o 7º deles dificilmente seria um agravante, pois as consequências poderiam ser “boas”, e isto atenuaria também a pena.

O único item que poderia ser considerado um agravante de fato seria o item 8, pois o comportamento da vítima, seja reagindo ou não, seria a da mais absoluta impossibilidade de legítima defesa, haja vista que a lei, o sistema, a opinião pública e a polícia, estão todos contra ela. Mas, se levarmos em conta a realidade de que o policial foi instrumentalizado, o agravante vai pesar para o autor mediato, e nunca para policial.

Então, temos que: o policial tem 6 atenuantes penais e 2 neutralidades. Nenhum agravante. E, voltando para a realidade, ele é instrumentalizado objetivamente, e não se pode incidir atenuantes nem agravantes para quem é instrumentalizado num crime. Resumo da ópera: as vítimas são reais, mas o crime tem certamente outro autor. 


E quanto ao policial que já se convenceu de que o Estado é violência, e que mesmo assim age em nome de uma imoralidade? Aí sim. Se existir este tipo de policial com consciência libertária (?), há “crime”, no sentido de ação consciente. Ainda assim, ele pode ser ameaçado de prisão por prevaricação caso se recuse a trabalhar. E Chiocca em momento algum introduz o critério “consciência dos atos” para julgar os policiais honestos como marginais.


Fernando Chiocca prossegue:

“aquelas pessoas que deveriam desempenhar exclusivamente uma das mais honradas e corajosas funções da sociedade[...], são as mesmas pessoas que na maioria dos casos desempenham muitos outros crimes — as vezes não fazem nada além de praticar crimes.”


O que se vê é que as argumentações de Chiocca são baseadas unicamente em retórica, ou no senso de justiça precário que quer identificar "criminosos" com a simplicidade de um olhar. Pelo fato de haver vítimas, ele procura culpados partindo de senso comum, e de uma percepção de justiça e moralidade seriamente distorcidas, ou atrofiadas. O que ele faz é tentar aplicar unicamente, e de forma atabalhoada, uma ética de liberdade sobre uma circunstância em que uma teoria da justiça deveria obrigatoriamente estar presente

O autor do artigo tenta ainda “afagar” os policiais, descrevendo sua atuação como “uma das mais honradas e corajosas” – mas faz isto ao mesmo tempo em que os imputa a mais horrenda acusação de bandidagem vil, colocando-os no nível de ladrões, assassinos e nazistas.

Se há autores do "crime", os culpados são a própria sociedade, que sustenta ideologicamente um sistema coercitivo, e sobretudo, os políticos conscientes que não contestam este sistema. Cria-se,então, um dominó jurídico, onde cada peça criminalizada compromete a outra a ser cúmplice. Chiocca, apesar de nitidamente bem intencionado, coloca-se ele mesmo na posição de criminoso, ao praticar imputação falsa de crime à parcela de policiais honestos e dedicados, para os quais certamente irá ligar quando for assaltado.

É deste modo que muitos libertários, seduzidos pela ilusão de facilidade, aplicam sua doutrina a todo e qualquer caso indiscriminadamente, privando-se das categorias mentais de disciplinas afins tão necessárias, como se tivessem em mãos uma “teoria de tudo”.

Chiocca, com este tipo de abordagem, insufla o discurso socialista de ódio contra a PM, e coopera para cumprimento de suas metas estatistas. Uma destas metas é a “desmilitarização” da polícia militar, que colocaria o país num estado policialesco chavista do dia para a noite: a PM deixaria de se subordinar às forças armadas para ser comandada pelo executivo, num ato jurídico de concentração de poder jamais visto na história brasileira.

Sim: o sistema de segurança estatal tem de ser contestado, mas a polícia tem de ser defendida – por razões estratégicas, e sobretudo éticas. Pessoas como Chiocca parecem não fazer a menor ideia do que é o dia-a-dia de um policial, do grau de coragem necessário para arriscar-se num tiroteio com assaltantes de banco. A insensibilidade e a incapacidade para se perceber hierarquias morais com clareza prejudicam a percepção de uma realidade: a de que policiais honestos e competentes são, sim, heróis. A tentativa de vilanizar um herói citando a complexidade do ser humano (meio herói meio vilão, como faz o referido autor) não serve de argumento, pois o policial está sendo acusado por Chiocca de ser policial – e nada mais. Não há nenhum argumento libertário diferente que pese sobre policiais, que não pese também sobre qualquer outro funcionário público que é pago mediante o roubo dos impostos - e nem por isso se sai por aí dizendo que concursados são criminosos.
Talvez a única diferença relevante, por este aspecto, entre os policias e outros concursados, seja o fato de que os policiais realmente podem proteger a vida, liberdade e propriedade de outros, arriscando saúde, família e futuro em combates frontais, enquanto são chamados de nazistas e ladrões pelas costas – justamente por aqueles que tentam defender. Isto sim,é moralmente repugnante.

Para entender a PEC da desmilitarização e a falácia esquerdista: http://libertatum.blogspot.com.br/2013/11/a-falacia-da-desmilitarizacao-da-policia.html


Por: Manoela Baldesco

Nenhum comentário:

Postar um comentário